Às Marias desse Brasil
Maria do Céu é portuguesa. Nasceu em uma pequena aldeia próxima à Lisboa em 1947. Seus pais não eram casados, mas viviam juntos. Os dois, uma filha mais velha e a pequena Maria recém-nascida. Mas, como bem sabemos, nem sempre isso quer dizer que o pai se mantinha fiel a essa esposa.
Em uma noite, o pai de outra moça que também havia engravidado, levou o pai de Maria debaixo de revólver para casar com sua filha e foi aí que a dificuldade aumentou. Se hoje em dia a vida das mulheres já não é fácil pelo preconceito, imagine naquela época em um lugar com estruturas extremamente precárias e pouca educação.
A mãe de Maria, Nazaré, passou a ser menosprezada, ofendida e apontada na rua por ser mãe solteira, expulsa de casa pelos pais. Os vendedores de alimentos não vendiam seus produtos para ela, o que fez com que Maria muitas vezes ficasse sem leite quando bebê. Dependiam de outras mulheres para comprar o leite e levar para casa. E, enquanto isso, o pai continuava vivendo na mesma aldeia com sua esposa e filhos, mas sem dar assistência à família anterior. “Quando criança, eu lembro de questionar minha mãe: se ele é meu pai, por que ele vai buscar as filhas na escola com guarda-chuva e eu volto pra casa debaixo de chuva?”
Desde criança, Maria do Céu era questionadora e respondona. Sua mãe a chamava de “russa de mau pelo”, como se dizia na época de crianças mal criadas, e apanhou muito por isso. “Eu achava que só minha mãe era assim, que só eu era apontada como a filha da fulana, que as outras mulheres que eram certas. Carreguei muita culpa por isso. Só muitos anos depois fui descobrir que várias pessoas da aldeia viviam a mesma situação que eu.”
Maria ainda teve mais três irmãos por parte de mãe em Portugal. Conforme a infância passava, a situação não ficou melhor. Maria lembra dos momentos em que passou fome e, inclusive, que chegaram a morar em um palheiro, um galpão de pedra onde se guarda o feno para os animais.
Com a sorte de quem ainda tem boas almas por perto, uma brasileira que havia passado alguns meses na aldeia convidou Nazaré para vir para o Brasil com as duas filhas, mas ela não quis. Ao invés disso, mandou somente as filhas para o país, pois não queria que elas tivessem o mesmo destino, fossem perseguidas da mesma forma. “Eu acho que comigo não ia se repetir porque eu era muito brigona. Uma vez um velho tentou passar a mão em mim e eu fui pra cima dele. Tinha muito nojo”, conta Maria.
Primeiro veio a filha mais velha e depois Maria, aos 11 anos. Foi levada à Lisboa e colocada em um navio para vir para Santos. “Eu achava que vinha pra cá pra estudar, ser culta, esperta. Porque lá na escola, em um ano eu fiz dois. Eu era muito rápida. Mal sabia o que ia encontrar aqui.” E realmente, não foi bem assim que aconteceu. Já durante a viagem de navio, a mulher que era responsável por cuidar de Maria no caminho a maltratava. Não a deixava descer quando o navio parava nos portos, a deixava sozinha (Vale lembrar que os navios daquela época em nada se pareciam com os de hoje, né?). E ainda levou anos trabalhando até pagar a passagem para os donos da casa onde morava. “A minha irmã foi para uma casa boa, uma mãe boa, mas eu não dei a mesma sorte.”
No documento para vir ao Brasil estava que Maria viria para trabalhar, não para morar como filha de uma família. E ouviu isso por muitos anos de Laurinda e José, os donos da casa. “Eu ouvia ‘se você não fizer o serviço direito, a gente te põe numa caixa de bacalhau e manda de volta pra Portugal’. E eu queria correr, brincar, fugia pra casa da vizinha pra brincar com as meninas de lá.”
E, além disso tudo, a saudade já apertava o coração a ponto de afetar a saúde. Após chamarem um médico por causa de uma forte dor de cabeça que Maria do Céu tinha todas as tardes, veio o diagnóstico: ‘o que ela tem é saudade’, disse o médico. Com lágrimas dos olhos, Maria conta que lembrava do choro sofrido da mãe enquanto ela ia embora. “Ela fez isso pra gente ter uma vida melhor. Eu não faria isso com os meus filhos, não conseguiria. Eu sentia muita falta dela, mas também teve uma época em que eu tinha raiva por ela ter feito isso comigo. Eu pensava na mãe ideal pra mim, via outras mulheres da família aqui no Brasil e queria que uma delas fosse minha mãe, fosse boazinha, me desse carinho”, conta.
Um tempo depois, Maria percebeu que seu sonho de estudar não seria realizado. Apesar de ter pedido para enviarem seu diploma da escola de Portugal, Laurinda nunca a deixou estudar no Brasil. “Você veio aqui para trabalhar, não pra estudar, ela dizia”. Sua rotina era cuidar da casa, dos filhos da família, costurar para todos, sem nenhum momento de lazer. Não podia sair, ter amigas. “Minhas amigas eram minha irmã e a família, as que se tornaram minhas cunhadas depois. E eu não pensava em sair dali porque achava que tinha que ser grata a ela. Era tão burrinha que não percebia que estava sendo explorada.” Na adolescência, enquanto todas saiam para passear, ir aos bailes, Maria ficava em casa trabalhando.
Os anos passaram, Maria do Céu casou (com um sobrinho de Laurinda) e saiu de casa. Mas, a vida não ficou mais fácil por causa disso. “Meu marido era muito ciumento, não queria que eu saísse de casa, nem o pão podia comprar. Queria que eu fingisse que não conhecia as pessoas quando cruzava com elas na rua. Uma vez quis fazer uma surpresa e fiz luzes no cabelo. Quando ele viu, foi um problemão. E eu, boba, abaixava a cabeça e obedecia.” Somente anos mais tarde, com o amparo dos filhos, que Maria passou a se posicionar e exigir respeito. “Depois que eu entendi que eu sempre estive obedecendo os outros, primeiro a vó Laurinda (forma carinhosa que os filhos de Laurinda a tratavam) e depois meu marido, e nunca fiz o que quis, eu mudei. Antes, eu pedia permissão pra fazer as coisas. Depois, eu só falo ‘eu vou, se você não quiser ir, pode ficar em casa’.”
A doença
Mas, a missão de Maria com Laurinda ainda não havia acabado. A convivência sempre se manteve mesmo após a saída de Maria de casa, e, anos mais tarde, a situação se inverteu. Maria do Céu, que sempre foi maltratada e explorada por Laurinda desde criança, teve o altruísmo e o amor de cuidar dela quando se manifestou o Mal de Alzheimer. O que para alguns poderia ser um momento de vingança, revide, para Maria foi uma oportunidade de dar amor ao próximo. Foram mais de 10 anos cuidando de Laurinda durante sua doença. Cuidados que, com o agravamento do problema, envolviam dar banho, trocar fralda, dar comida na boca, levar aos médicos, entre outras coisas. Períodos em que foi necessário desalojar um filho de seu quarto para acomodá-la. “Meu filho dormia num colchão na sala para dar a cama pra ela. Eu cortava pedacinhos de pão bem pequenos, no tamanho que ela conseguia engolir e passava manteiga em cada um deles pra ela comer, depois era só bolachinha maisena no leite.”
Nesse momento, seu relacionamento com o marido também se fortaleceu, pois ele foi de grande ajuda e apoio nos momentos difíceis. “Ele foi como um filho que cuidou dela. Nessa época eu gostava muito dela. Eu tinha visto aquela mulher tão altiva, independente, autoritária, como ela estava assim? E você veja o que é a vida: tudo o que ela me judiou e veio cair na minha casa. E eu tratei dela como se fosse a minha mãe. Porque pra minha mãe eu não fiz nada, ela estava muito longe.”
Laurinda faleceu em 2001 e para Maria e a família foi uma perda muito grande. “Por mais que eu me sentisse enclausurada porque via todo mundo saindo e vivendo sua vida e eu não podia, a morte dela foi terrível. Eu estava me sentindo tão abandonada, tão sozinha porque tinha perdido ela. Ela esteve internada um mês e eu não conseguia tirar os lençóis e a almofada onde ela sentava na minha casa. Eu estava na esperança de que ela voltasse.”
A volta pra casa
Depois de tantos anos de desafios, dificuldades e muita luta, uma grande alegria de Maria foi quando, aos 60 anos, voltou a sua aldeia em Portugal e reencontrou sua mãe, seus irmãos e conheceu até os irmãos por parte de pai. “Foi lindo! Quando eu cheguei, falei: viu, mãe, demorou 48 anos pra eu vir ver você, mas eu vim!”
Hoje, aos 67 anos, Maria do Céu é uma mulher linda, uma grande mãe de três filhos incríveis, ativa, amiga, muito amada e, principalmente, muito feliz.
Essa é a história da Maria do Céu, mas poderia ser da Joana, da Natália, da Adriana, da Fernanda ou de tantas outras. Histórias de mulheres de fibra, que, mesmo com todas as dificuldades impostas pela vida, nunca desistem, mesmo com medo, nunca recuam, mesmo tristes, nunca desabam. E o motivo e a força disso tudo, eu descobri no fim da nossa conversa.
– “Maria, revendo toda a sua vida, pensando em tudo o que você fez, se tivesse uma palavra pra resumir tudo, qual seria?”
– “Amor. Fiz tudo por amor aos meus filhos e à minha família.”
É, Maria, você não é do Céu à toa. Em nome de todas as mulheres que, ainda hoje, passam por preconceitos, dificuldades e desafios, muito obrigada!