Quanto pesam 100 quilos? Aprendizados sobre como viver em paz dentro do seu corpo
Por Carolina Freitas de Mendonça
Sou uma mulher de 100 quilos.
Esse fato chegou ao meu conhecimento sem que eu procurasse por ele. Há dois anos não me pesava e, quando subi na balança agora em novembro, foi de costas para o visor. Só o avaliador físico da academia precisava ver os números, então falei: “Não quero saber quanto deu.”
Uma semana depois, fui numa consulta de rotina, e a assistente do médico declamou em alto e bom som para que ele anotasse na minha ficha: CEM E TREZENTOS. Pensei: “Do que ela tá falando?” Eu estava na balança, sem roupa… só podia ser meu peso.
Evitar a balança era uma decisão consciente. Queria esvaziar o significado dos números. Dar menos importância para medidas exatas e mais para como eu me sentia. E eu me sentia bem. Eu me sinto bem. Dia desses postei nas redes sociais uma foto de biquíni na praia. Se isso é tá na pior, o que quer dizer estar bem? #marilacfeelings <3
Nas últimas vezes em que eu tinha me pesado estava com 90 quilos. Foi um susto pular para os três dígitos. Mas estou tranquila. Vou seguir me amando e usando biquíni mesmo assim – desculpe, sociedade. A sensação que tenho é que, mesmo que queira reduzir o peso para ficar mais saudável, posso encarar os 100. Acredite, já encarei coisa pior.
A gorda que venceu a anorexia
Quando eu tinha 13 anos, desenvolvi a mania de me pesar dezenas de vezes por dia, só para ter o prazer de ver o aparelho mostrar o “resultado imediato” de almoçar só alface, ficar horas sem beber água ou passar 60 minutos suando no transport da academia. Minha meta era chegar aos 45 quilos. Sempre fiquei em torno dos 47. Me via com mais de 100. Tenho 1.54 metro de altura.
Mais do que uma mania, a fixação com o peso me levou à anorexia. Passava os meus dias medindo cada pedaço do meu corpo e comparando com o de amigas e de famosas que apareciam nas revistas de dietas, trocava toda refeição que eu conseguia por shake diet. Levei inúmeros tombos nessa época, porque ia fazer exercícios vigorosos, como corrida, sem me alimentar antes. Ficava zonza e… cataploft.
A rigidez com a alimentação não demorou a ser acompanhada por episódios de compulsão. Todos esses diagnósticos, da anorexia e da compulsão, eu só fui descobrir bem depois, em terapia. Na época, eu achava que estava tudo super bem comigo. Em segundos, devorava barras de chocolate, lata de leite condensado, bolacha de água e sal com o que quer que fosse doce em cima, sem preocupação com o sabor. O negócio era, escondida, engolir o máximo de comida possível.
Uma grande ideia
O sentimento depois desses ataques era de enjoo e derrota. Até que ouvi falar de gente que forçava o vômito para compensar exageros na alimentação. Achei simplesmente genial! Como eu não pensei nisso antes?
Passado mais um episódio compulsivo, lá fui eu tentar. Não funcionou. As dicas de como provocar vômito circulavam livres entre as meninas no colégio e, acredite, eram bem mais refinadas do que só colocar o dedo na garganta. Tentei algumas, nunca dava certo. Passei a sentir medo. Não sabia bem do que. O fato é que por anos me senti covarde por falhar nessas tentativas. As coisas não iam nada bem. Sem saber, escapei por pouco da bulimia.
Esse relacionamento doentio com meu corpo se estendeu pela minha adolescência toda. E tem suas sequelas até hoje.
Devoradora de sentimentos
Aos 16, resolvi fazer cursinho junto com o 3º ano do colégio desde o início do ano, porque não iria me perdoar se não passasse no vestibular de uma universidade pública – não era só com a alimentação que eu era rígida. Para compensar as horas que passava em sala de aula e estudando, adivinha o que eu fiz: me joguei na comida e parei de fazer exercícios. Eu tinha uma rotina diária de 3 horas de academia e fazia musculação com peso de gente grande. Parei tudo. Passei no vestibular, de primeira, para um dos cursos mais concorridos da época e na universidade federal. E ganhei 15 quilos.
A partir daí, a compulsão se tornaria a minha melhor amiga. Ou pior inimiga, como queiram. Eu via um sentimento e NHAC, mastigava e engolia. Quanto mais peso eu ganhava, mais derrotada eu me sentia. Quanto mais derrotada eu me sentia, mais comia. Eu mascarava o mal-estar pensando: “Tudo bem. É hora de focar no profissional. A dieta, os exercícios podem esperar.” O resultado é que me tornei tão compulsiva por trabalho quanto por comida.
A fixação por um corpo magro sempre me acompanhou. Da dieta da sopa de aipo à hiperproteica, fiz todas. Com e sem orientação médica. Fui a endocrinologista, nutricionista, nutrólogo. Emagrecia e engordava 10 quilos num estalar de dedos. Chegou um ponto em que só a alimentação (ou a falta dela) não bastava. Tomei floral, chás, antidepressivo, moderador de apetite. Só parei quando tive um apagão no escritório, no meio do expediente: muito remédio, muito trabalho, pouco sono, pouca comida.
Uma batalha contra mim mesma
Tinha uns 22 anos na época do apagão. Não sabia como sair daquilo, mas sabia que tinha que sair. Demorou. Foram passos lentos até que eu passasse a ler coisas mais saudáveis sobre corpo e aceitação, decidisse fazer terapia e conseguisse me olhar no espelho e pensar: “Taí uma pessoa que merece ser cuidada. Chega de me punir.”
Na verdade, esse é um trabalho de todos os dias. Hoje, aos 32 anos, o bichinho da rigidez ainda habita meu peito e volta e meia aparece para dar palpite: “Olha você, gorda, se balançando toda na academia. Que ridícula.” Eu respiro fundo e sigo.
Algo que me ajuda demais nesse processo é saber da história de aceitação e de amor próprio de outras mulheres. Quando vi o primeiro ensaio de moda plus size fiquei embasbacada: ela tem aquela mesma gordura atrás do joelho que eu, ela tem braço grosso e não tá nem aí. E, olha, ela tá linda. Eu quero me sentir assim também.
A aceitação é um longo caminho. A gente cresce esperando a aprovação dos colegas, dos amigos, da família. Tudo isso quando na verdade o que conta mesmo é a gente se aprovar. É um sentimento mágico. Muda tudo.
Aí você pode pensar: grande coisa. Você fala isso tudo aí, mas tá gorda. Estou. Eu estou gorda. Peso 100 quilos. Nem sempre é confortável, serei sincera. Às vezes, é dolorido. Peso é algo tão tabu que nem as modelos plus size costumam mencionar. Elas falam o manequim que vestem, mas raramente o peso. Eu entendo. Pensei mil vezes antes de contar a vocês que peso 100 quilos. Eu não tinha dito a ninguém antes de escrever esse texto. Mas, olha que curioso, cada vez que escrevo “100 quilos” me sinto mais leve. Afinal, é só um número. E eu sou tanto mais que esse número. Sou craque no carteado, boa contadora de causos, esposa amorosa, adotante da vira-lata mais linda do mundo. Para que me esconder? Estou aqui, completa, inteira e com todos os meus 100 quilos para te perguntar: posso ajudar?